sábado, 19 de dezembro de 2009

Farmácia Viva!!!

Raizeiras comprovam que saberes tradicionais associados ao uso de plantas medicinais podem, a um só tempo, melhorar o sistema de saúde e preservar o meio ambiente

Foto: Fernanda Barreto
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A raizeira Elza Conceição na horta comunitária do I. Kairós

11/12/2009 - O conhecimento sobre o uso das plantas medicinais forma hoje a chamada “fitoterapia popular”, uma prática alternativa adotada por milhares de brasileiros que não têm acesso às práticas médicas oficiais. De olho em fortalecer o cultivo e o manuseio destas plantas, incorporando o conhecimento popular de raizeiras e benzedeiras ao Programa Saúde da Família (PSF), um grupo de 12 voluntárias já produz e repassa sete tipos de remédios caseiros ao único posto de saúde do distrito de Macacos (MG), de onde são distribuídos gratuitamente para cerca de 250 famílias.

Macacos fica no município de Nova Lima, a 30 quilômetros de Belo Horizonte. Apesar da proximidade com a capital, o distrito de 2 mil habitantes possui apenas um posto de saúde e nenhuma farmácia. Desenvolvido pelo Instituto Kairós, o programa Farmácia Viva tenta compensar a deficiência promovendo a articulação de uma rede de 25 raizeiras, a criação de hortas comunitárias, a validação científica dos fitoterápicos pelo PSF e a inclusão dos medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS). Anualmente, são distribuídos cerca de 400 frascos de medicamentos, como o Gel Bactericida, a Loção para Piolho e o Xarope para Asma.

“Em 2004, demos início ao programa e percebemos um conhecimento riquíssimo ainda não sistematizado”, lembra a superintendente-executiva do Instituto Kairós, Rosana Bianchini. O protagonismo não é à toa, explica. De um lado, a falta de infra-estrutura médica manteve viva e diversa a utilização de plantas medicinais por dezenas de famílias sem acesso aos postos de saúde. De outro, contribuiu uma exuberante área de Mata Atlântica em transição para o Cerrado, onde já foram identificadas mais de cem plantas medicinais entre nativas e exóticas, extraídas da própria floresta ou cultivadas em quintais familiares.

“Só de saber que uma pessoa toma o seu remédio, você fica feliz demais. Xarope nosso vai para o posto e no outro dia não tem mais”, sorri a raizeira Elza Conceição Madalena, de 61 anos. Para tosse, por exemplo, ela recomenda limão e eucalipto, cozidos e adocicados com rapadura. As plantas, avisa, têm que ser colhidas na lua minguante e secadas na sombra, para não desidratar. A segurança vem da tradição passada pela mãe, que se mudou para Macacos, em 1949, com sementes e mudas de plantas medicinais na boléia do caminhão que trazia a família de Lafayete, município no interior do estado. Elza tinha então quatro meses e os pais vinham como caseiros de um sitiante. Na falta de uma farmácia, ela e os seis irmãos sempre foram tratados a base de fitoterápicos. “Aqui nunca teve ônibus, luz, água. Chegamos e eram três casas, sendo que uma era a igreja”, lembra.

Quem conhece bem esta rotina é a amiga e também raizeira Nilza Nazareth de Lima, de 58 anos. Em Macacos desde 1975, ela garante ter tratado a filha com bronquite a base de flores do campo. Em caso de emergência médica, mais dificuldades: eram pelo menos quatro horas de caminhada até a BR-040, com a sorte de encontrar uma carona até os municípios de Nova Lima ou Belo Horizonte em busca de um centro de saúde. “Já passei muita noite com eles (filhos) no terreiro, fora de casa. Com falta de ar, eles não conseguiam nem ficar dentro de casa”, lembra Nilza, que é uma das 12 voluntárias que se engajaram no projeto: “Hoje, a gente é reconhecida. Tem gente que bate na minha casa às 22h pedindo remédio. E é isso: o que a gente sabe, tem que dividir”.

Integração de saberes

Além de fortalecer o cultivo, outro objetivo do programa é integrar os médicos do PSF. O caminho é imprescindível, explica o médico Marcelo Galantini, que há três anos acompanha o trabalho das raizeiras. Primeiro,
Foto: Fernanda Barreto
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A raizeira Nilza Lima é uma das 12 voluntárias do programa
diz, é preciso identificar corretamente as plantas e outras substâncias utilizadas, decidir quais remédios são úteis e suprimir aqueles que são, evidentemente, ineficazes ou perigosos. Isso implica a classificação científica de todas as ervas utilizadas na preparação dos remédios e o reconhecimento pelos médicos do PSF sobre o uso das plantas medicinais como alternativa em tratamentos.

“A intenção é que o paciente saia do centro de saúde com o fitoterápico e o prontuário na mão. Essa é uma tendência que pode ampliar nosso arsenal terapeutico, com baixos custos e eficiência comprovada”, avisa Galantini. A troca de saberes, completa Nilza, também serve aos dois lados. Ela, por exemplo, passou a usar avental, luva, máscara e toca ao manusear as plantas, além de controlar a quantidade de ervas usadas em cada medicamento. “Antes usava as ervas a revelia. Hoje também sei como manipular as plantas na medida certa. Se o guaco for verde, por exemplo, é preciso fervê-lo sem tampar a panela. Se estiver seco, pode tampar porque as toxinas já saíram”, ensina.

Inovação

O fornecimento de fitoterápicos ao SUS, adianta o Kairós, não chega a ser uma novidade. O que há de inédito é o seu desenvolvimento por meio de um arranjo solidário validado por processos de pesquisa. “Queremos um Arranjo Produtivo Educativo Solidário que tenha foco na implantação e sustentação do serviço de fitoterapia no SUS e que seja consolidado por uma rede colaborativa de desenvolvimento social”, resume Rosana.

Segundo ela, isso vai além de estruturar a Farmácia Caseira Comunitária. Significa também abrigar todos os aspectos da cadeia produtiva, desde o plantio das ervas, a validação científica dos medicamentos e o acompanhamento do uso de acordo com as normas da vigilância sanitária, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e das diretrizes municipais dos programas públicos de saúde. O segundo passo, avisa, é incorporar oficialmente este programa em toda rede municipal de saúde como uma ação preventiva e de segurança alimentar, beneficiando as comunidades e gerando um processo de autonomia nos processos de saúde do município.

Para chegar lá, o Kairós aposta na mobilização do próprio distrito de Macacos, importante centro turístico no entorno de Belo Horizonte. Restos de poda de bares e restaurantes, pousadas e condomínios serão recolhidos e utilizados como adubo orgânico para um horto de mudas, que resultará em quintais produtivos e hortas comunitárias responsáveis por fornecer as plantas medicinais a serem utilizadas pelo SUS. No caso das espécies nativas, estão previstos planos de manejo. “É assim: você pede licença à árvore, tira um pedaço da casca e coloca barro para cicatrizar. Outra coisa é cuidar com amor, com o coração, para o remédio dar mais certo”, ensina Elza.

Saiba mais

Em seu programa de Agroecologia, o Instituto Kairós desenvolve desde 2004, em Macacos, projetos voltados à valorização e ao uso do conhecimento popular a respeito das plantas medicinais, além de ações que fortalecem a prática da segurança alimentar e da agricultura orgânica. A Tecnologia Social Farmácia Viva recebeu em 2007 uma certificação nacional concedida pelo Banco de Tecnologias Sociais da Fundação Banco do Brasil. Em 2008, passou a liderar o programa preventivo de política pública do SUS na localidade e recebeu o Prêmio FINEP de Tecnologia Social e Inovação na região Sudeste.

Por Vinícius Carvalho, jornalista do Portal da RTS

Agroecologia Urbana